NATIONAL GEOGRAPHIC VOL. 126. NO. 2 – AUGUST, 1964
Este artigo é a tradução da peça sobre Moçambique, publicada na revista National Geographic, de Agosto de 1964. A revista em formato digital (pdf) pode ser descarregada aqui! (Nota: clicar nas imagens para as ampliar nos dispositivos móveis).

Artigo e Fotografias
Por VOLKMAR WENTZEL
Secção Estrangeiro do National Geographic
Moçambique – Terra da Boa Gente

ACORDES ESTRIDENTES de 24 marimbas punham as centenas de dançarinos em movimentos de uma cadência selvagem. Guerreiros em peles de leão ornamentadas com caudas de macaco elevavam-se nas alturas de braços abertos. Raparigas faziam girar saias de capim e cordões de contas, não traziam mais nada no corpo. O pó levantava-se no bronzeado céu Africano para se depositar em corpos musculados brilhando com suor.
Fiquei de pé perto dos dançarinos numa alta ribanceira com vista para a praia no Oceano Índico onde, há 466 anos, Vasco da Gama e os seus marinheiros esgotados desembarcaram no que hoje é Moçambique, África Oriental Portuguesa. Lutando contra tempestades ferozes, os exploradores contornaram o Cabo da Boa Esperança na sua busca por um caminho marítimo para a Índia.
Os dançarinos e os músicos eram Chopes, uma tribo espalhada pela área de Zandamela, a cerca de 215 quilómetros a nordeste da capital de Moçambique, Lourenço Marques. Os seus ancestrais impressionaram de tal maneira os navegantes Portugueses que, em Janeiro de 1498, um deles escreveu no seu diário:
“Descobrimos um pequeno rio e ancoramos perto da costa … Aproximamo-nos da margem nos nossos botes, e vimos uma multidão de Negros … O chefe disse que nós éramos bem vindos ao que precisássemos no seu país … Nós chamamos ao país Terra da Boa Gente”.
Os idosos Chope, tal como verifiquei enquanto obervava as danças, ainda prezam a lenda do Gama e da sua tripulação.
“Eles vieram em navios como aquele na moeda,” disse o Chefe Felisberto Machatine, mostrando-me uma caravela do século XVI numa moeda Portuguesa.
À medida que o sol se punha, o ritmo da música acelerou e a dança tornou-se frenética. Quando o som atingiu um crescendo, os dançarinos avançaram em graciosos movimentos oscilantes que se foram transformando em ataques e contra-ataques simulados cada vez mais ferozes. Os homens saltavam e giravam, brandindo lanças e batendo com os escudos ovais no chão.
Subitamente a música silenciou-se e todos cantavam ao compasso do tilintar suave de paus com pontas de borracha em teclas de madeira dura. Perguntei ao Administrador do Distrito Mário Ferreira Gonçalves que tipo de canções estavam eles a cantar.
“São sobre questões concretas e às vezes com graça”, disse ele, “quase como os calipsos das Índias Ocidentais. Muitas vezes são cheias de sátira mordaz que não poupa nem os chefes nem eu próprio. Nós sabemos muito pouco acerca da poesia, música ou mente do Africano, mas por vezes conseguimos vislumbrar os seus estados de alma e anseios pelas suas últimas canções”.
Contrastes Violentos que Marcam Moçambique
Para mim, a dança Chope foi o início de uma viagem de oito meses percorrendo o comprimento e a largura de Moçambique. Esta grande província portuguesa estende-se ao longo da costa por 2575 quilómetros, igual ao comprimento da Costa do Golfo dos EUA (mapa, página 205).
Vi tribos com máscaras a dançar em palafitas, cruzei entre ilhas costeiras e inspeccionei fortalezas e igrejas do século XVI. A Ilha de Moçambique, que já foi vibrante com o comércio da Índia, descobri ser um museu vivo da vida islâmica e colonial portuguesa.

Lourenço Marques a dois níveis, vive em terreno alto e trabalha em baixo. Acima de barreiras vermelho-argilosas, com vista sobre o porto, erguem-se edifícios cintilantes de apartamentos e hotéis. O carvão armazenado ocupa o espaço aberto no centro. A África do Sul e a Rodésia do Sul, esta sem litoral, encaminham mercadorias através do porto, ajudando a elevar a atracagem de navios para 1500 por ano.
Moçambique, o segundo maior território do pequeno Portugal a seguir a Angola, tem uma área onde cabe oito vezes e meia a metrópole. Desde montanhas na fronteira com uma altura que excede 2400 metros, o terreno desce até ao Oceano Índico, ao longo de uma costa com 2757 kms de extensão. Os seus 6 milhões e meio de habitantes criam uma mistura das culturas africana, portuguesa e árabe.
A bordo de um vapor a combustão de madeira segui a rota do Dr. David Livingstone subindo o rio Zambeze. Num helicóptero sobrevoei a baixa altura pelo desfiladeiro selvagem de Cabora Bassa, cujos rápidos frustraram a sua busca de fácil acesso às terras altas do interior.
Nenhuma terra oferece contrastes mais violentos. Algumas horas de viagem levaram-me do domínio indomado dos Chopes a Lourenço Marques, uma capital que surpreende cada visitante com a sua elegância sofisticada.
Certamente, ofereceu muito mais do que eu tinha razões para esperar na África Oriental – mesmo numa cidade de 184.000 habitantes. Passeando ao longo de calçadas pavimentadas em mosaicos ondulados como os de Lisboa e do Rio de Janeiro, maravilhei-me com os desenhos imaginativos da arquitectura, em grande parte obra de Amâncio d’ Alpoim Guedes, mais conhecido aqui como Pancho (página 226).
Pancho fez de Lourenço Marques o seu laboratório, e os seus edifícios de betão em cantiléver suscitaram comentários a nível mundial. Em casas de apartamentos, longos e afiados espinhos protuberantes saiem de paredes com fachadas em padrões de mosaicos brilhantes. As chaminés parecem cogumelos. Muitas decorações foram inspiradas por desenhos primitivos.
Vagueando pela “cidade velha”, perto do porto, encontrei o mercado Vasco da Gama, onde os agricultores vendem os seus produtos e os pescadores as suas capturas.
Nampula Ergue-se dos Pântanos
Longe no nordeste, Nampula no interior – uma cidade com 20 anos e 30.000 hab. – foi outra revelação. Do alto da torre do sino da Catedral de Nossa Senhora de Fátima, o presidente da câmara negro, Pedro Baessa, mostrou-me as novas escolas, um estádio, um museu, um hospital, uma fábrica de cerveja, um moínho de farinha em construção e residências de telhados de telha entre jardins.
“Há 30 anos tudo isto era pântano. Drená-lo foi o nosso primeiro trabalho”, disse o presidente.
“Somos parte de um plano mais vasto”, acrescentou. “Quinhentos e sessenta quilómetros de caminhos-de-ferro foram construídos para o interior. Chá, tabaco, algodão e muitos outros produtos seguem por aqui para Nacala, o nosso novo porto”.
“Os carris irão um dia alcançar Vila Cabral e as terras altas em redor do Lago Niassa, as nossas melhores terras agrícolas. Iremos explorar os depósitos de carvão e de outros minerais. Nampula irá tornar-se na metrópole do norte”.
O que mais me impressionou foram as escolas de Nampula, equivalentes das que se encontram em Lourenço Marques e nas outras cidades.
Faces que Formam um Mosaico Racial




Na nova escola técnica, os rapazes trabalhavam a madeira, metal e equipamento eléctrico. As raparigas em limpos calções azuis estavam a ser ensinadas nas ciências domésticas.
“Estas são as profissões práticas de que mais precisamos”, comentou o director.
As concorridas aulas noturnas provaram que nelas os homens tribais que saíam do mato percebiam que a educação é a chave para “a magia do homem branco”. Numa aula eu vi empregados de mesa, empregados de limpeza, cozinheiros, um polícia rural (cipaio), um padeiro, um operador de torno e três mecânicos automóvel lendo atentamente com movimentos dos lábios, tal como fazem os principiantes.
Numa escola de uma missão, quase 100 raparigas lavavam, coziam, cozinhavam e estudavam nutrição. Os seus “materiais de apoio” eram os pequenos órfãos que, satisfeitos, brincavam na creche. As raparigas regressarão um dia para as suas tribos para serem mães e professoras.
“O futuro de África está dependente das suas mulheres”, disse-me a madre superiora. “Muitas das nossas tribos são matriarcais”.
Na África actual em constante mudança, um continente a fervilhar em lutas e expectativas ambiciosas, eu achei Moçambique – pelo menos na aparência para o exterior – uma ilha de tranquilidade.
Funcionários públicos portugueses e moçambicanos negros trabalhavam juntos para melhorar escolas, serviços de saúde, estradas e caminhos-de-ferro. Pessoas de muitas raças e credos viviam harmoniosamente em povoamentos e terrenos financiados pelo estado. O Serviço Psico-Social, uma organização comparável ao Peace Corps, trabalhava efectivamente no meio das tribos isoladas (páginas 220-221).
Colonos Constroem uma Vida Nova
Conduzindo através de uma zona de mato ao longo o Rio Limpopo a norte de Lourenço Marques, eu deparei-me com a evidência impressionante da determinação de Portugal em melhorar a terra moçambicana e a sorte do seu povo.


A alguma distância vi luzes de aldeia, pouco depois conduzia numa rua pavimentada ladeada por edifícios modernos de blocos de concreto. Um sinal anunciava a Pousada do Limpopo, uma pensão, onde me registei e fiquei num quarto.
Pelos trabalhadores que descansavam na esplanada da pensão, eu soube que tinha chegado ao Guijá, uma de 13 aldeias que constituem o Colonato do Limpopo, o maior de vários programas de povoamento (páginas 202-203).
Procurei o administrador do colonato e fiz perguntas.
“Temos 2000 famílias instaladas aqui”, disse Borges Leitão. “Mais de 600 destas famílias não nativos africanos, e eles vivem exactamente como aqueles que emigraram de Portugal, Madeira e Açores. Estamos a tentar absorver outros 1500, mas leva tempo até que aprendam os nossos hábitos.
“Quando cá cheguei há sete anos”, continuou o Sr Leitão, “o caminho-de-ferro de Lourenço Marques terminava numa selva infestada de febre. O solo é tão fértil que nem precisa de fertilizantes. Mas para o aproveitarmos, tivemos primeiro que dominar o Limpopo. Construímos uma barragem de 640 metros de altura no rio, com portões para o controlo automático das enchentes, e 13 canais de irrigação com um total de 200 kms.

Voando sobre a colónia de helicóptero, testemunhei a cobra castanha serpenteante do Limpopo. Pude ver a barragem, o lago que criou e os canais de irrigação que levam a água a centenas de campos verdejantes – mais de 31.000 hectares no total.
Objectivo Nacionalista: Separação de Portugal
Para lá de toda a aparente calma, Moçambique pode ainda vir a sentir a agitação que varre grande parte de África. Uma organização política chamada Frente de Libertação de Moçambique, com sede na vizinha República Unida do Tanganica e Zanzibar, quer que Portugal se empenhe na independência de Moçambique.
A Frente leva a cabo uma campanha dirigida pelo Dr. Eduardo C. Mondlane, um nacionalista moçambicano que anteriormente leccionou antropologia na Universidade de Syracuse no Estado de Nova Iorque.
Acompanhando turbulências em territórios próximos, Moçambique prepara-se para possíveis dificuldades. Em Nampula falei com o Tenente Coronel Francisco Eduardo Nazaré, na chefia do Comando Territorial do Norte.
“O meu território vai desde o Zambeze até ao Rio Rovuma”, disse ele. “Isto representa quase cinco vezes o tamanho de Portugal”.
Nós inspeccionamos as casernas do quartel, refeitório, campo de tiro, oficinas, e uma aula de tácticas de contra-guerrilha extremamente eficientes.
“Os problemas aqui só poderão vir do exterior”, disse o Coronel Nazaré, “tal como aconteceu em Angola. Mas desta vez não seremos apanhados de surpresa”.
Se os mesmos problemas estavam a ser preparados em Moçambque, eu não vi sinais disso nas gentes humildes dos campos. Em todo o lado encontrei descontraído sentido de humor e hospitalidade cordial.
Certa vez, ao passar pelo que Rudyard Kipling chamava “o grande verde-cinza, engordurado Limpopo”, andei no batelão onde cantavam. Uma dúzia de homens musculados cantavam enquanto puxavam pelo cabo de aço que nos impelia na travessia do rio.
“Boa viagem em Moçambique!”, cantavam.
O cantar era tão bom que eu puxei do meu gravador de fita. Um passageiro moçambicano num elegante fato azul retirou o seu chapéu.
| MOÇAMBIQUE |
| Os capitães de Portugal do comércio da Índia lançaram olhos especulativos em terra, ao circundarem a pouco conhecida África nos séculos XV e XVI. A busca por comida e água logo se transformou em busca por ouro e comércio, e os postos de comércio expandiram-se para o interior. Hoje a bandeira de Portugal ainda está desfraldade em Moçambique, a segunda maior (depois de Angola) das suas províncias africanas. A planície costeira da África Oriental, coberta de mato, estende-se para norte até montanhas de 2400 metros e sobe para oeste até ao planalto. O Zambeze, o quarto rio mais longo de África, divide o país ao meio. A agricultura prospera ao longo dos rios Zambeze, Save, e Limpopo mais abaixo. No interior vivem tribos cujos hábitos pouco mudaram desde que o missionário escocês Dr. David Livingstone explorou a área há mais de um século. NOME OFICIAL: Moçambique, África Oriental Portuguesa; ÁREA: 783.000 quilómetros quadrados; POPULAÇÃO: 6.650.000; LÍNGUA: Português, várias línguas Bantu, Swahili costeiro; RELIGIÃO: Católica Romana, muçulmana, pagã; ECONOMIA: Agrícola – algodão, açúcar, castanha de caju, chá, sisal, óleos vegetais, côco, algum carvão mineiro, cobre, berílio, outros minerais; CIDADES: Lourenço Marques (184,000 incl. subúrbios), capital e principal porto; Beira (81.000), segunda maior, importante porto, início/fim via férrea; CLIMA: um pouco como a Flórida, as estações são marcadas por um período chuvoso (novembro-março) e outro seco (abril-outubro). |
O cantar era tão bom que eu puxei do meu gravador de fita. Um passageiro moçambicano num elegante fato azul retirou o seu chapéu.
“Patrão”, disse ele, “tu não és daqui. Tu falas inglês. Eu sou António Matavata. Posso te ajudar?”
“Sim”, disse eu. “Por favor mantem-os a cantar.”
Encorajados pelo António, os homens cantaram mais alto e com mais entusiasmo.
António contou-me que aprendeu o inglês enquanto trabalhava nas minas de ouro da África do Sul. Com o dinheiro ganho lá ele conseguiu ter uma mulher e comprar um camião. Agora tinha três filhos, uma casa de de cimento com telhado de telha e um negócio de transportes.
O batelão encostou suavemente no cais de alcatrão na margem sul do Limpopo. António apertou-me a mão e subiu para a cabine do seu camião Mercedes-Benz a gasóleo. Eu dei à chave no meu Toyota feito no Japão.
“Boa viagem em Moçambique!” disse alto António quando nos separamos.

O Carro Avaria Numa Terra Selvagem
Alguns dias mais tarde, outra vez ao volante do Toyota, entrei no coração na região de caça grossa de Moçambique, que se estende ao longo do Rio Save. Comigo estavam Luís Monjane, o meu ajudante moçambicano e Shirley Duncan, um jornalista australiano que estava à boleia da Beira até Lourenço Marques.
Durante todo o dia, com o calor a martelar-nos como um martelo pneumático, conduzimos ao longo de uma picada poeirienta na direcção do Rio Save. Logo de manhã cedo, para nosso deleite, tínhamos espiado elandes, impalas, kudus grandes, nhialas, oribis, bois-cavalo, e os anões sedutores da família dos antílopes, as pequenas gazelas.
O mato abundava em leões, elefantes e muito mais caça grossa, sabíamos, mas ao calor do meio-dia estes animais mantinham-se invisíveis.
Subitamente um audível “ping” soou das entranhas do Toyota e nós acabamos por parar. Tentei as quatro mudanças e a marcha-atrás. A única coisa que aconteceu foi a aceleração sem tracção do motor. Era óbvio que alguma coisa se tinha avariado na transmissão.
Isto era um dilema real. O último posto administrativo ficava para atrás umas cinco horas de carro. Algures à nossa frente ficava uma concessão de caça no Save com 46.600 kilómetros quadrados, a maior de África, operada para a Safarilândia, Lda., por Werner von Alvensleben.
O pensamento de passar a noite – ou mais – nesta selva não era nada agradável.
“Vamos lá ver,” – disse Shirley, “O que teria feito o Dr. Livingstone?”

“Acho que ele teria caminhado”, disse eu.
“Certo que estás. Vamos a isto.”
Começamos para o sul, da maneira que estávamos indo quando o infortúnio aconteceu. Luís incentivou-nos, dizendo que poderia haver aldeias nativas nas proximidades.
Ele estava certo. Em meia hora, encontrámos cinco cabanas dem mau estado. Os habitantes saíram para nos cumprimentar.
“Viva!” gritaram os homens, enquanto as mulheres se curvaram e bateram palmas.
O chefe enrugado cambaleou para frente. Ouviu gravemente enquanto Luís, que tem conhecimento de muitas línguas tribais, explicava a nossa situação.

a terra para um bazar onde as mulheres vão espalhar os produtos para venda.
“Njonjonjo vai ajudá-lo”, disse o chefe. “Vou mandar um mensageiro.”
“Njonjonjo”, explicou Luís, “significa O Alto.”
O chefe então apontou para o sol poente e indicou que O Alto poderia não chegar antes do anoitecer. Sentou-nos em banquinhos feitos de troncos de árvore e gritou ordens que fizeram as mulheres correrem como galinhas.
Cozinheiros Brincalhões Servem Pratos de “Nada”
A sua filha voltou com uma cabaça de água, enquanto os outros começaram a bater o milho local com grandes pilões de madeira. As mulheres divertiam-se e riam com seu trabalho.
Exibindo-se, elas batiam palmas enquanto o pilão estava no ar, então rapidamente agarravam-no novamente para o impulso para baixo.
O trabalho delas produziu uma farinha grossa, que foi misturada com água e amassada até formar uma massa amarelada. Colocaram isso em cuias de cabaça, junto com folhas de mandioca, que parecia espinafre, e serviram-nos.
“Sabe a nada frio”, disse Shirley. Eu tive que concordar. Regamos com shenia morno, um vinho de palma.
Quando escureceu, os aldeões reuniram-se em redor de uma fogueira e um deles começou a tocar uma melodia na mbira. Este instrumento simples consiste em tiras de metal num painel de madeira montadas numa cabaça ou num pedaço de madeira oco que serve como um ressonador. Pressionada com os dedos, a mbira entoa uma música agradável e plangente.
A Floresta Fornece a Peça do Automóvel
Enquanto a mbira latejava, os aldeões falavam calmamente. Os bebés dormiam em fundas nas costas das suas mães. Algures na imensidão negra envolvente, um chacal uivou. O mundo moderno parecia muito longínquo.
O feitiço foi quebrado pelo som de um motor, e eu vi luzes a vir na nossa direcção através da floresta. “Njonjonjo!” gritaram os aldeões.
Um carro avançou até à clareira e dele saiu O Alto. Era o líder dos safaris – o imponente e louro Werner von Alvensleben. Eu tinha ouvido falar muito deste homem. A reserva que ele dirige, maior do que a Suíça, atrai os principais caçadores de caça-grossa do mundo.
Werner tinha um estojo de ferramentas e um ar de auto-confiança absoluta. À luz de uma lâmpada de querosene, sondou a caixa de velocidades da Toyota até retirar dois pedaços de metal.
“Aha!” exclamou ele. “Um pino qquebrado”. Não te preocupes – vamos fazer um novo”.

Interrogava-me como poderia ser fabricada uma peça maquinada no meio da noite africana. Werner falou com o chefe. Um homem da tribo abalou para a escuridão e reapareceu com um pedaço de ébano.
Com um faca de mato Werner desbastou o pau até ao cerne e esculpiu um pino substituto. A Toyota funcionou lindamente com a esta peça improvisada e levou-nos até à sede da concessão no rio Save.
Aí, enquanto se montava um pino feito de fábrica, relaxámos sob o tremendo telhado de colmo do alojamento principal e olhámos para as paredes penduradas com carregadores antigos, arcos e flechas, e anéis e ornamentos tecidos à mão.

Ilhas no Mar Atraem Desportistas
De volta à capital, embarquei num avião da DETA, a companhia aérea de Moçambique, e voei para norte sobre praias e mar aberto em direcção à Ilha de Moçambique. Sobrevoámos as Ilhas Benguérua e Bazaruto, estâncias populares entre os rodesianos e os sul-africanos para mergulho e pesca de espadim.
A norte de Quelimane um nítido arco-íris mergulhava em plantações de côco húmidas e brilhantes, entre as maiores do mundo. Cerca de 5,5 milhões de palmeiras crescem nesta área; a copra, a polpa seca dos côcos, é exportada para todas as partes do mundo para fazer sabão, margarina, glicerina, e muitos outros produtos.
Na boca larga da Baía de Mossuril, emoldurada de palmeiras, a Ilha de Moçambique apanhava sol. As velas salpicavam as águas azuis e um transatlântico de cor creme flutuava como um brinquedo.
Nesta pequena ilha, que acabou por dar o seu nome a toda a província, Vasco da Gama, em 1498, encontrou árabes de turbante governados por um xeque do Sultanato de Quíloa. Os árabes viviam em belas casas e faziam um comércio intenso com terras a norte. Da Gama ancorou aqui um mês – um mês que terminou em luta porque, como os portugueses o explicaram, “o xeque … abrigou traição no seu coração contra os nossos homens, cobiçando o que ele poderia tirar dos navios”.

O avião aterrou no Lumbo, no continente a oito quilómetros de distância, onde passei a noite. Na manhã seguinte, atravessei para a ilha de barco no meio de uma frota de embarcações de última hora, carregadas de trabalhadores e produtos. Na praia, encontrei um animado mercado repleto de mulheres fofoqueiras a rir, vestindo capulanas brilhantes e artisticamente enroladas.
Ao meio-dia, o calor tomou conta da situação. Do minarete, o muezim de roupagem branca fez soar a sua melodiosa convocação para a oração.
Como se tivesse soado um alarme de ataque aéreo, o mercado dissolveu-se. Os muçulmanos afluíram à oração, e de edifícios coloniais frescos e de paredes espessas, funcionários e homens de negócios entraram em riquexós para serem levados a casa para o almoço e a sesta. As lojas fecharam e os debicadores de café desapareceram dos cafés. A apenas 15 graus a sul da linha do Equador, a Ilha de Moçambique submete-se sabiamente aos elementos.
No interior do Forte São Sebastião, iniciado pelos portugueses no século XVI, percorri as muralhas e inspeccionei os baluartes pontiagudos, cada um com o nome de um santo. Alinhei a vista ao longo do canhão que outrora guardava contra ataques do mar, e no subsolo vi cisternas que continham água suficiente para abastecer um milhar de soldados durante um cerco prolongado.

O comandante da guarnição, A. S. Gaspar, e um cabo que transportava chaves maciças conduziram-me ao longo de uma passagem escura que atravessava a parede da fortaleza. Quando as pesadas portas foram destrancadas, fiquei deslumbrado com a luz do sol a reflectir-se a partir das paredes caiadas da pequena capela do século XVI de Nossa Senhora do Bastião.
A Capital Mundial do Caju
Ao lado do porto, o Senhor Alcino Caldeira conduziu-me através da elegante alfândega do século XVIII na qual ele trabalha.
“A nossa ilha é sede mundial de castanhas de caju”, disse o Senhor Caldeira, apontando para uma pilha de sacos a transbordar. “Os cajus são trazidos do continente para aqui. Todos os anos Moçambique exporta até 90.000 toneladas de castanhas de caju para outras terras. A maioria delas são consumidas no seu país”.
As caixas contendo milhares de cópias do Corão, a caminho do Egipto para pontos ao longo da costa, lembraram-me que era o aniversário de Maomé, que nesse ano caiu a 12 de Agosto, de acordo com o calendário lunar muçulmano. Recebi um convite para a celebração do aniversário na mesquita.
Fora da mesquita tirei os meus sapatos, perguntando-me se alguma vez os voltaria a encontrar na confusão de sapatos que vão desde sandálias de cabedal a botas de couro de Marrocos.
“Al-saldm ‘alaykaw (A paz esteja convosco)”, disse o Imã Ismail Umar, o meu anfitrião.
Os fiéis ainda se lavavam numa fila de torneiras e limpavam os dentes paus fibrosos esfarrapados, uma espécie de escova de dentes descartável que eu tinha visto ser utilizada pelos homens das tribos no mato. Os pais ajudavam os filhos pequenos a vestir roupas frescas.

De repente fez-se silêncio. Um cajado pastoral dourado numa mão e o Corão na outra, Ismail Umar enfrentou o seu rebanho e liderou as orações. Testas tocaram os tapetes.
Olhando para as filas de túnicas, turbantes e bonés bordados, vi negros, árabes, indianos, chineses, portugueses e gregos a rezarem lado a lado.
Após o culto, começou a celebração do aniversário de Maomé. Um homenzinho escuro com uma túnica em forma de camisa de noite alinhou os fiéis num grande círculo que oscilava. O suor fluía das sobrancelhas enquanto ele chicoteava a multidão num frenesim sincopado, cada vez mais rápido, que se prolongou pela noite.
No continente, perto da Ilha de Moçambique, encontra-se a Praia das Chocas, a estância de férias da região. Fui lá para ver um homem que, tinha ouvido dizer, vivia pela mais agradável das ocupações.

Era Kurt Grosch, marinheiro de praia e conchologista. Encontrei-o descalço e com calções esfarrapados, sentado numa rocha. Mulheres faladoras e crianças risonhas traziam-lhe conchas, das quais seleccionava e comprava espécimes escolhidos.
Terminado o trabalho matinal, Grosh levou-me até à sua casa de palha e serviu cerveja. Mostrou-me bandeja após bandeja com conchas limpas e classificadas, parte da sua coleção completa de conchas da zona.
“A maioria das conchas encontradas no oeste do Oceano Pacífico e no norte do Oceano Índico pode ser encontrada aqui, além de outras”, disse ele. “As correntes do Oceano Índico e do Canal de Moçambique favorecem a sua migração e distribuição.”
Ele pegou uma linda concha com um delicado padrão branco sobre um fundo brilhante em marrom-avermelhado.
“Bonita, não é?” ele disse. “É uma Conus dalicus. O molusco que a construíu tem dentes venenosos, como pequenos arpões; eles podem infligir uma picada fatal se o animal vivo for manuseado descuidadamente.”
De uma gaveta especial, o conhecedor alemão tirou cuidadosamente o tesouro de um concologista. Era uma concha nodosa de cerca de vinte centímetros de comprimento, de cor amarela, marrom-alaranjada e castanha, com uma abertura branca brilhante.
“Esta é a Cymalium ranzanii”, disse ele com reverência, “A espécie ficou quase esquecida durante cento e tal anos. Dos dez bons espécimes existentes nas coleções do mundo, eu encontrei cinco.”
O Mar Açoitado pelo “Chicote de Deus”
A norte da Ilha de Moçambique fica Porto Amélia. De lá parti para visitar as ilhas ao largo que estiveram entre os primeiros assentamentos dos portugueses.
Porto Amélia ainda dormia quando a minha lancha, tripulada por cinco negros musculosos, saiu da Baía de Pemba para um sol nascente entre nuvens arrocheadas de trovoada. Atingindo o mar aberto, rolámos e picámos insistentemente. Os marinheiros tinham-me dito que a Baía de Pemba, capaz de abrigar uma frota inteira, era uma benção para esta costa cheia de ciclones.
Como que para banir os pensamentos do “Chicote de Deus”, como são chamadas estas violentas tempestades tropicais ao longo desta costa, um cardume de botos saltitava de um lado para o outro à nossa proa.
Margeada por um recife de cume branco, a costa estende-se por quilómetros como um panorama de falésias rochosas e trechos arborizados com uma vila ocasional. A estibordo havia fileiras de ilhas cravejadas de palmeiras e bancos de areia repletos de pássaros.

Ao final da tarde, uma rajada escureceu o céu. As ondas batiam na nossa proa e uma chuva forte reduzia a visibilidade a zero. A lancha gemeu e rangeu. Sempre que a popa se levantava, os parafusos gritavam em protesto.
Equipamento solto voava pela cabine. Um marinheiro assumiu um posto precário na proa, observando os recifes. Os outros, olhando para o vazio, conversavam em Kimuane, um dialeto costeiro. Calculei que iríamos procurar abrigo a sotavento da Ilha da Quirimba, mas seria uma corrida acirrada contra a poderosa maré de 4 metros.
Ao anoitecer conseguimos. A tempestade havia-se dissipado e nuvens esfarrapadas expuseram uma lua pálida. Uma casa iluminada anunciou-se entre as palmeiras. Encalhámos o barco e caminhámos pelo que parecia ser um quilómetro e meio de areia, até sermos recebidos por Joachim Gessner, sua esposa e dois filhos, uma das famílias alemãs expatriadas que se encontram em todo o leste da África.
Na manhã de Páscoa, Gessner mostrou-me a sua plantação de côcos. “Meu pai e um sócio começaram tudo isto há 30 anos”, disse. “Agora temos 60.000 árvores. Também cultivamos o nosso próprio café, limões, laranjas e vegetais.”
Mais tarde, dei uma olhada pelo interior de selva da ilha, cheia de buracos infestados com pítons e caracóis gigantes.
Deparei-me com paredes de coral de um metro de espessura, restos de uma antiga missão dominicana. Cactos e trepadeiras brotavam das rachaduras, e uma figueira crescia no altar de pedra. Lápides e pedaços de uma pia batismal barroca jaziam em ruínas – lembranças de um Portugal ousado numa terra bárbara.


Com a maré alta navegámos para o vizinho Ibo, relíquia dos tempos em que as ilhas estavam mais protegidas dos ataques dos povos tribais do que os portos do continente.
Ao entrar numa praça deserta, pensei que estava numa cidade fantasma. Ruas vazias, mansões fechadas e telhados desabados aumentavam o clima misterioso. Postes rococó de ferro fundido e fachadas elaboradas sugeriam a prosperidade do século XIX devido a um tráfego miserável – navios negreiros transportando carga humana do Ibo para as Índias Ocidentais.
Enquanto eu contemplava o vazio económico que é Ibo hoje, os suaves acordes de um Te Deum vinham da igreja em frente à praça. Os sinos soaram e os meninos do coro vestidos de vermelho, os paroquianos e um padre com cinto de sol avançaram.
“Por favor, junte-se à nossa festa de Páscoa”, disse Mário Batista de Oliveira, administrador da ilha. Ele acompanhou-me até uma grande varanda aberta sustentada por colunas bem proporcionadas. A casa atrás estava em ruínas.
Auxiliado pelo agente dos correios, pelo funcionário da alfândega e pelo médico goês, o Administrador Oliveira dispôs a mesa do banquete. De todas as direções, matronas, meninas e criados traziam travessas cheias de lagostas, camarões e mexilhões. Um marisco chamado macasa, espetado em bambu partido, era particularmente saboroso; também chocos, lulas cozidas na própria tinta.

Um Crescendo de Batuques Expulsa o Espírito Maligno
De regresso ao continente, virei para norte até Mueda, centro de um planalto habitado pela tribo Maconde. Há menos de 50 anos os Macondes gozavam de um esplêndido isolamento.
Mesmo durante a época em que os traficantes de escravos vinham para arrebanhar bens humanos, os Macondes estavam protegidos por escarpas íngremes e pela sua própria natureza guerreira. Agora Mueda tem uma pista de aterragem e pode ser alcançada por estrada.
A maioria dos homens Maconde ainda transporta armas – lanças, machados, arcos e flechas (agora sem as pontas venenosas) ou carregadores de boca. Eles tatuam-se generosamente e as mulheres usam protetores labiais (páginas anteriores).
Com o Dr. Hector Fonseca, o comissário de saúde local, juntei-me à multidão de uma aldeia para assistir a uma dança Maconde. Em torno de uma fogueira, dez tocadores de batuque suados afinavam os seus instrumentos, aquecendo as peles e depois testando-lhes a tensão.
De repente, ao toque de um corno de cudu, os tambores vibraram com força e três figuras altas apareceram saltitando entre as palhotas.
Dois usavam máscaras amarelas pintadas com desenhos característicos dos Maconde. O terceiro usava um divertido rosto falso preto com penas salientes como chifres. Todas as máscaras eram cabeças completas esculpidas em madeira maciça. Quem as usava só conseguia ver através das bocas abertas (página 218).


De repente, em passos rápidos e saltitantes, alternados com movimentos oscilantes, um dos dançarinos de máscara amarela, ou mapicos, dirigiu-se para a multidão. Fingindo terror, o povo recuou. No auge do frenesi dos tambores, o mapico parou, estremeceu e tremeu como se estivesse possuído. Então, como se derrotado pela barreira sonora dos tambores, o mapico bateu os pés e, com os braços levantados, recuou.
Rostos tatuados abriram-se em sorrisos e a multidão aos gritos fingiu perseguir o mapico de volta às palhotas.
“Ele representa um espírito maligno”, explicou o médico. “Agora os tambores afastaram-no. É um ritual antigo, mas pouco sabemos sobre ele.”
Mais tarde, entre Mueda e o Rio Rovuma, encontrei por acaso uma brigada de sete homens do Serviço Psico-Social. A versão moçambicana do Peace Corps. Diante de uma tenda, um jovem estagiário negro atendia uma fila de Macondes. As crianças choravam e as mães observavam ansiosamente até que todas as feridas fossem untadas com pomada (página 221). Outros pacientes pareciam gostar de injeções hipodérmicas.
“Eles têm uma fé ilimitada nas agulhas, muito mais do que nos comprimidos”, disse o senhor Narra Paixão, líder da brigada.
Debaixo de uma árvore, a mulher de Paixão, rodeada de mulheres sérias e de lábios grossos, ensinava pacientemente tricô. Uma garota tatuada estava na sua primeira aula de fundição (página 220).
Depois de escurecer, foram exibidos filmes de formação. Os Macondes gostavam mais dos filmes de si mesmos – especialmente da dança dos mapicos.


Na manhã seguinte viajei para norte, até ao rio Rovuma, que faz fronteira com a República Unida de Tanganica e Zanzibar. Em Nangade, perto da fronteira, encontrei membros da tribo Macua a prepararem-se para uma das suas estranhas danças sobre pernas de pau.
As pernas de pau que montavam eram diferentes daquelas que conheci quando criança; não tinham apoios para os pés. As extremidades superiores dos postes de 2 metros eram amarradas firmemente às pernas com fortes fibras de tecido. Panos vermelhos e amarelos, como calças compridas e largas, cobriam as pernas de pau. Máscaras grotescas cobriam os rostos.
Assistentes ajudavam os dançarinos a ficarem “de pé”. Como gigantes com cabeças atarracadas, eles caminhavam até ao centro da aldeia, onde, ao som dos tambores, caminhavam numa linha serpenteante de conga e depois executavam uma espécie de reviravolta sobre as pernas de pau. Pelo que pude ver, a dança era puramente para diversão e entretenimento (acima).
Entre os espectadores divertidos estavam várias mulheres para quem rir deve ter sido doloroso por causa dos grandes discos nos lábios superiores. Alguns estudiosos acreditam que esta desfiguração começou durante a época da escravidão, para tornar as mulheres menos desejáveis.
Vapores de Popa Navegam pelo Zambeze
Ao voar para sul a partir da primitiva região Macua, fiquei novamente impressionado com os contrastes vívidos que saúdam o viajante em Moçambique a cada passo. Em Quelimane, capital do Distrito da Zambézia, encontrei pessoas de raças e credos variados vivendo num ambiente de elegância e charme. Quelimane, outrora um notório centro escravista, é hoje sede de veneráveis empresas que exportam coco, algodão, chá, sisal, arroz e madeira.

Livingstone, após a sua viagem através de África em 1856, disse: “Devo falar bem para sempre da hospitalidade portuguesa”.
Isto é tão verdade hoje, como descobri quando fui a uma festa na Residência do Governador. Entre os convidados estavam várias matriarcas mestiças elegantemente vestidas. Estas senhoras senhoriais, descendentes de antigas famílias da Zambézia, ostentam o título de dona, que remonta aos séculos XVIII e XIX, quando grandes extensões de terra foram dadas a mulheres que se comprometessem a casar com portugueses da Europa. A prática já desapareceu há muito tempo, mas as donas ainda gozam de grande prestígio entre os africanos mais velhos.

Aceitei com entusiasmo quando o Senhor Fragoso de Sousa, director-geral da Sena Sugar Estates, me ofereceu uma viagem num dos vapores da sua empresa. Aqui estava a oportunidade de ver algo do célebre Zambeze, navegado pela expedição de Livingstone em 1858.
No Luabo, sede da empresa açucareira no Delta do Zambeze, o rio deslizava largo e tranquilo após uma viagem de 2.650 quilómetros através de Angola, Rodésias e Moçambique.
Com José Gomes Pedro, um botânico português, embarquei no Dombe, uma pequena embarcação a lenha com uma fina chaminé vermelha (página 223). A grande roda de pás transformava a água em espuma enquanto avançávamos no meio do rio. Dirigíamo-nos às ilhas da foz do rio para recolher combustível para o Dombe e outros navios da frota da companhia.
Na casa do leme encontrámos o Capitão José Pinto com um papagaio verde pousado no ombro. Dois marinheiros cuidavam do leme.
“Passaremos pelo Canal Kongoni, utilizado pela primeira vez por Livingstone”, disse o capitão. “Os bancos de areia são o nosso maior perigo”, acrescentou. “Eles mudam de dia para dia.”
Passamos por muitos bancos de areia cobertos de patos e gansos egípcios. Para assustá-los e fazê-los fugir, o capitão toca o antiquado apito de latão do navio. Os pássaros ergueram-se numa nuvem e depois desceram lentamente até pousarem num banco mais distante. Crocodilos, perturbados nos seus banhos de sol, bamboleavam em direção à água como viúvas indignadas. O Capitão Pinto apontou ilhas com nomes como Ilha dos Amores e Ilha dos Marabus.
Pântanos Vivos com Caranguejos e Macacos
Virando para o Canal Kongoni, navegamos por uma selva tranquila de palmeiras e folhagens emaranhadas. Aqui o Senhor Pedro estava no seu elemento. Ele apontou amendoeiras com folhas avermelhadas, papiros com copas prateadas balançando ao vento e os altos pinheiros do Delta do Zambeze, batizados em homenagem a Livingstone – Pandanus livingstonianus.
Contornando curvas estreitas, a nossa proa quebrava reflexos calmos na água e salpicava ilhas flutuantes de aguapés. Alguns pescadores em canoas agitavam remos em forma de coração, em saudação.
Continuamos rio abaixo até podermos ver as ondas do Oceano Índico, depois viramos para outro amplo canal ladeado por densos manguezais repletos de macacos brincalhões e enormes caranguejos.
“Os macacos pegam caranguejos abaixando as suas caudas nas tocas dos caranguejos”, disse Berniz, o comandante do navio. “Quando um caranguejo o agarra, o macaco iça-o como um peixe na linha. Às vezes, o caranguejo é grande demais para ser içado e agarra-se ao rabo do macaco até que a maré sobe e o afoga.”
Tudo isto com cara séria! Quanto a mim, acreditarei quando vir.

Ancoramos aqui para passar a noite e depois do jantar o Senhor Pedro fascinou-me com alguns conhecimentos botânicos recolhidos num levantamento de quatro anos em Moçambique.
“Muitas das frutas e vegetais cultivados amplamente em outras partes do mundo não chegaram a esta parte de África até tempos comparativamente recentes”, explicou.
“Os marinheiros portugueses trouxeram milho, mandioca, castanha de caju e amendoim das Américas. A manga vem da Índia, e os árabes introduziram laranjas, limões e gengibre. A agricultura no sentido europeu nunca existiu aqui antes deste século. Ainda hoje, a maior parte de África pertence a uma cultura da enxada.”
Ao amanhecer, fui acordado pelo barulho de cordas de madeira de mangue a ser despejadas em barcaças amarradas ao longo do Dombe. Montanhas desta madeira foram empilhadas ao longo da margem do rio. Foi cortada por um povo local cujas cabanas estão assentes em palafitas, pois a maré de 3,6 metros aqui inunda frequentemente a área.

À medida que a maré baixava, o Dombe e as barcaças assentavam na lama. Carregamos durante seis horas até que quatro barcaças ficaram cheias, a maré subiu e ficamos a flutuar novamente. O Dombe, um navio ganancioso, consumiu grande parte da madeira no regresso ao Luabo.

O Zambeze é navegável durante 450 quilómetros rio acima até Tete, uma cidade seca e poeirenta onde encontrei duas fortalezas e algumas casas de pedra – os únicos vestígios de 400 anos de história colorida. Livingstone chegou a este ponto com o seu vapor de roda lateral. Por duas vezes ele saiu daqui para sondar o desfiladeiro de Cabora Bassa, 72 quilómetros rio acima, e uma vez enviou o seu irmão Charles. O que descobriu foi tão desanimador, que ele confidenciou ao seu diário:
“As coisas parecem sombrias para o nosso empreendimento. Esta Kebrabasa (como ele lhe chamou) é o que eu nunca esperei. Nenhum indício da sua natureza jamais chegou aos meus ouvidos… O que faremos se este for o fim da navegação, não posso adivinhar agora.”
A sua tentativa, é claro, falhou.
Cabora Bassa ainda frustra a navegação fluvial, mas o engenho do homem mudará esta situação. Em breve começará a construção de uma grande barragem através do desfiladeiro para energia, navegação e controlo de cheias, parte de um projecto para desenvolver todo o vale do Zambeze.
“O lago recuará 240 quilómetros”, disse-me o engenheiro-chefe Fernando de Castro Fontes.
Ossos Humanos Sugerem a Tragédia
Um avião ligeiro do governo levou-me acima do sinuoso Zambeze, a noroeste de Tete, para uma visita ao acampamento dos engenheiros e para observar o desfiladeiro. Deslizamos para uma pista de aterragem aninhada num vale. Mais tarde, um helicóptero conduziu-nos através das fendas nas montanhas, depois desceu várias centenas de metro até pousar numa ponta de areia no rio agitado.


Confinado aqui a uma largura de menos de 60 metros, o impetuoso Zambeze esculpiu galerias e cavernas de formatos curiosos, de modo que as margens íngremes lembram um queijo suíço. Borrifo e espuma espalham-se por pedras do tamanho de casas. Explorando a marca da maré alta, 18 metros acima do rio, o piloto António Cunha e eu deparámo-nos com uma pilha de crânios humanos, costelas e ossos pélvicos – evidência muda de alguma tragédia esquecida.

A sul de Tete, em Vila Gouveia, juntei-me a António Peixe, um jovem oficial do exército, e a John Vail, um geólogo inglês. Partimos em busca de Nhacangara, uma fortaleza montanhosa pouco conhecida, uma das muitas ruínas antigas espalhadas ao longo da fronteira com a Rodésia do Sul.
Um dia de marcha com seis carregadores levou-nos através de florestas tropicais sem trilhos, matagais de bambu e terras montanhosas. Atravessámos um rio rápido com água até ao peito e subimos rochas até depois do anoitecer; então chegamos à cidadela a 1.370 metros.
A lua projetava sombras misteriosas entre as paredes curvas de pedra e as passagens estreitas que serpenteavam o topo da montanha. Monólitos verticais apontavam como dedos fantasmagóricos para a noite. Morcegos esvoaçavam e algures um chacal chamou.

No topo da antiga muralha, na minha mente vi pessoas de outra época trabalhando em terraços e homens fundindo ferro, cobre e ouro em fornos a carvão. Através destas montanhas, caravanas de escravos carregadas de marfim e ouro seguiam em direção à costa.
O folclore, grande parte dele transmitido pelos árabes que negociavam ouro aqui muito antes dos portugueses, ligou estas terras altas às minas do rei Salomão e à terra bíblica de Ofir.

Evidências arqueológicas e primeiros escritos indicam que os portugueses do século XVI encontraram uma cultura florescente da Idade do Ferro num império conhecido como o reino do Monomotapa – Dono das Minas.
Nas ruínas encontramos pedaços de escória de ferro e peças de cerâmica. Examinando o vale a oeste com binóculos, descobrimos restos de centenas de terraços abandonados.
Os portugueses, em busca de ouro, logo aprenderam que o comércio era mais lucrativo do que a força. Bem no interior, nos mercados nativos, eles organizavam feiras para trocar tecidos, miçangas e bugigangas por metais preciosos. Alguns destes mercados continuaram a prosperar, e um deles prosperou na agradável cidade fronteiriça de Vila de Manica – não com o ouro, mas com os citrinos, o tabaco e o algodão.

Cheguei lá em dia de Festa Brava. Multidões festivas enchiam as ruas e cafés, e o aroma de bifes e salsichas grelhadas espalhava-se pelo parque público.
Cartazes anunciavam uma tourada, com matadores portugueses. Publicidade ilustrava vivamente a ousadia suicida dos forcados, que saltam entre os chifres dos touros em investida e se seguram para salvar a vida (abaixo).

A Movimentada Beira Desafia a Natureza
Depois de uma viagem de cinco horas por uma estrada bem pavimentada, notei ainda outro contraste dramático – desta vez entre a descontraída Vila de Manica e a próspera Beira, a segunda maior cidade de Moçambique, virada para o Oceano Índico. Jorge Jardim, empresário envolvido em vários empreendimentos, manteve contato com o seu escritório por telefone de ondas curtas enquanto me levava pela cidade.
“A Beira não é nada natural”, disse ele. “Foi construída sobre um pântano, o nosso abastecimento de água fica a 65 quilómetros de distância e a nossa eletricidade vem de uma central hidroelétrica a 180 quilómetros de distância. Está tudo errado, mas aí está.”
Vimos guindastes a carregar tabaco, chá e madeira nos porões dos navios. Os cais estavam repletos de cobre, cromo, manganês, corindo e minérios raros de lítio, o metal mais leve conhecido.
“A riqueza do nosso interior e da Rodésia e da Niassalândia passa por aqui”, explicou o Senhor Jardim. “O povo da Beira, independentemente da raça, desfruta talvez do mais alto padrão de vida que pode ser encontrado em toda a África tropical.”
A Vida Selvagem Prospera na Gorongosa

A apenas 65 quilómetros da Beira fica a Gorongosa, o maior parque nacional de Moçambique. Aqui, com o supervisor Augusto Silva, visitei um mundo tão puro como o primeiro amanhecer. Antílopes, búfalos e zebras vagavam pelas planícies enevoadas, e manadas de gnus debandavam através da neblina matinal, lembrando-me do trovão dos cavalos selvagens.
Dirigimos muitos quilómetros por uma vasta região selvagem, onde cerca de 4.000 elefantes, 500 leões, 25.000 búfalos e milhares de outras criaturas selvagens vagam à vontade.
Numa clareira na floresta surpreendemos leões alimentando-se de uma zebra recém-morta e de um jovem búfalo. Dirigimos perto, pois os carros não os incomodam. Um macho de juba negra abriu a boca e emitiu um som que certamente não era um rugido sério. Pode ter sido apenas um arroto. Parecia entediado e grogue.
“Cansam-se facilmente depois de se alimentarem”, disse o Senhor Silva.
Depois de mais grunhidos, o leão caminhou em direção a um grupo de palmeiras para se juntar a outros oito estendidos, lambendo as patas. Os abutres desceram para limpar as carcaças.
O mais impressionante foram os elefantes. Nós fotografamo-los pastando na planície aberta e passeando calmamente na floresta.
Um deles avançou para nós. Inesperadamente, rodou, pelo menos quatro toneladas dele. Com as orelhas abertas e o tronco levantado, gritou e veio em nossa direção a passos gigantescos (acima, ao lado).
Partindo rapidamente, o Senhor Silva observou: “Isto foi apenas uma investida simulada.”
Talvez sim, mas fiquei feliz por termos fugido.

Poucos dias depois, enquanto esperava em Lourenço Marques um avião que me levasse a casa, pensei em todas as imagens e sons que tinha desfrutado, em todos os portugueses, africanos e moçambicanos mestiços que tão hospitaleiramente me tinham tratado. Mais uma vez lembrei-me de Vasco da Gama e da sua tripulação de há mais de quatro séculos e meio, para quem esta recém-descoberta costa de um vasto e misterioso continente tinha sido a Terra da Boa Gente.
Que mudanças podem estar reservadas para a terra, eu não saberia dizer. Mas o povo, pensei – o povo de Moçambique continuará o mesmo.
FIM


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